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Karl Marx e o capitalismo: o dele e o nosso

Capitalismo é o regime do capital. Eis aí a função do “ismo”: acentuar que é o capital que importa. Quando endossamos o capitalismo como um regime que produz mercadorias, que gera riquezas para a sociedade e/ou que submete muitos à exploração perversa, podemos estar dizendo verdades, mas não respeitamos o “ismo”. O capitalismo é o regime que, antes de tudo e prioritariamente, visa a acumulação do capital. Este, não deseja acumular até um determinado limite, mas infinitamente. Sem crescimento e acumulação do capital não há capitalismo. Desse modo, pela própria definição, o capital é uma noção que implica em dinamismo. Por isso, não há uma boa fotografia do capitalismo, ela se sai melhor no cinema. Só o que busca obedecer ao movimento pode dizer algo do que só existe em movimento. Movimento, nesse caso, não é só deslocamento, mas antes de tudo transformação. Não à toa, frenesi e capitalismo andam juntos.

Entender o capitalismo é entender a velocidade. O capitalismo é um modo de organizar a produção das coisas, da sociedade e das subjetividades que implica em erigir um altar para a velocidade. Pois o próprio capital é “valor em movimento”, e este movimento deve ser cada vez mais veloz. O valor, por sua vez, na acepção de Marx, é o “tempo de trabalho socialmente necessário”. Se o valor, ou seja, o tempo de trabalho socialmente necessário, é monetizado, vira dinheiro, então que se saiba: dinheiro parado não é capital. O dinheiro deve andar. Deva andar a passos largos. Como se dá a andança do dinheiro?

Não podemos ver o valor em movimento, pois é uma relação, algo imaterial. O que podemos ver é sua representação monetária, o dinheiro. Por isso a dinâmica do capitalismo nos faz olhar para o dinheiro. Sua velocidade e seu montante, no capitalismo atual, nos assusta. Até ontem, sabíamos entender os números do dinheiro, agora os montantes são impronunciáveis. Então, reiterando a questão: como ele se acumula, como é seu movimento, sua andança?

Grosso modo, dizemos que Marx elaborou basicamente duas formas de representação do capital ou do dinheiro em movimento: D-M-D’ e D-D’. É fácil de entender, ao menos para uma apreciação geral. Na primeira formulação, trata-se do dinheiro (D) que é empregado para se conseguir produzir alguma mercadoria (M) que, enfim, indo para o mercado e realizando seu valor, gera mais dinheiro (D’). Na segunda formulação, trata-se de dinheiro (D) que gera mais (D’), sem que se tenha aí qualquer mercadoria corriqueira. Não há mágica aqui. Dinheiro gera dinheiro quando alguém empresta a outro certa quantia e recebe tal quantia de volta, acrescida de juros. Os juros funcionam, então, como um pagamento pelo uso do dinheiro durante certo tempo. Nesse tipo de mercado, o dinheiro vira uma mercadoria, porém com a sua bizarrice: é uma mercadoria que você paga por ela, mas não pode levá-la, apenas usá-la e depois devolve-la. Muitas vezes a dívida se mostra tendencialmente eterna, nunca mais devolvida, e você que a contraiu diz que um dia irá quitá-la, e todas as vezes que chega a data fatal para tal feito, o emprestador lhe dá mais crédito, mais dinheiro, apenas para pagar os juros vindouros da dívida.

O capital parece um ser vivo, um tipo de animal extraterrestre, de filmes de ficção, que quer sempre crescer e acumular. E já que parece um ser vivo, podemos atribuir a ele um sonho: ele deseja acumular sem ter de se envolver com o que é terreno. Seu sonho guarda um desejo de andar de forma metafísica, sem o sensível, sem a matéria. Ele prefere acumular através daquilo que cabe em uma formulação estranha, aquela em que dinheiro gera mais dinheiro sem que se tenha de ter, na intermediação, a mercadoria. Ele parece preferir ir pelo regime de juros do que pelo regime industrial.

A fórmula D-M-D’ é a forma terrena, do capitalismo industrial que Marx estudou e no qual viveu. A fórmula D-D’, Marx a conheceu muito bem, mas ele não viveu os tempos nos quais esta fórmula apresentou-se como contendo a lógica hegemônica do sistema capitalista. O tempo de preponderância dessa segunda formulação é o nosso tempo. Trata-se do capitalismo financeirizado. As duas fórmulas existem no capitalismo contemporâneo, mas a lógica do sistema, atualmente, é a das finanças. É o mercado financeiro, e não o mercado das mercadorias tradicionais, que impõe ritmos e objetivos ao capitalismo. O capitalismo financeiro é o capitalismo que fornece crédito para nós e para os governos, cria dívidas para nós e para os governos, gera o negócio com ações, títulos, derivativos e diversos “papéis”, e faz tudo isso em tempo veloz e real, graças ao mundo computadorizado e internetado, Trata-se do capitalismo que faz o presente depender do futuro, por meio do crédito, que é uma maneira de comprometer a vida das pessoas e dos governos. Uma vez tendo recebido crédito, todos passam a trabalhar no que interessa ao crescimento do capital, e não no sentido da produção, como no capitalismo de lógica industrial, e que até poderia ser um capitalismo capaz de dar ilusões. A saber: aquela ilusão de que trabalhamos segundo profissões que gostamos de executar.

Essa segunda formulação, D-D’, representa um capitalismo em que a velocidade é ainda maior que a daquele representado pela fórmula D-M-D’. Sua origem está envolvida em situações e acontecimentos que geraram o que hoje alguns chamam de “capitalismo cognitivo”, “capitalismo informacional”, “capitalismo de plataforma”, “capitalismo neoliberal” etc. Essas formulações a respeito do capitalismo são concomitantes à preponderância do capitalismo financeiro. Elas se interpenetram e se retroalimentam. Para explicar isso, volto a descrever o que ocorre com ambas as formulações de Marx.

Vamos deixar de lado aqui, propositalmente, uma parte mais complexa, que é explicação do que é o dinheiro e de como ele pode representar o valor, ou seja, o tempo socialmente necessário para a produção de mercadorias. Tomar esse caminho nos levaria a uma longa jornada, e os objetivos deste texto se perderiam.

Temos, então, D-M-D’. No andar do dinheiro, este começa o processo pela compra da força de trabalho dos humanos. Compra matérias primas. Coloca os humanos em fábricas e empresas de todo tipo. Arregimenta máquinas de diversos modelos e gerações. Traça e faz executar modelos de organização fabril e de trabalho. Põe os humanos para trabalhar sobre a matéria prima nas fábricas e empresas, e então, daí, vê os produtos surgirem. Esse produtos devem ser trocados por dinheiro. Eis aí o mercado, onde os produtos se transformam em mercadorias, são vendidas não pelo que valem pelo uso, mas sim pelo que valem no mercado.

Durante muito tempo os economistas se perguntaram como que dinheiro poderia, passando pela mercadoria, gerar mais dinheiro. Respostas de todo tipo foram dadas, especialmente nos séculos XVII e XVIII. O senso comum atual, não raro, repete formulações dessa época. Muitas pessoas dizem que alguém faz algo por um preço e então vende por um preço maior, e daí sem tem o lucro, ou seja, o que é tirado de D’. Marx deu uma resposta diferente. Ele disse que o lucro não se explicaria por razões de oferta e procura. A oferta e a procura de algo sempre existem em negociações mercadológicas – isso é o óbvio. Mas isso não explica o lucro. O lucro vem, segundo Marx, do acréscimo de valor gerado na produção da mercadoria. O acréscimo de valor, aquilo que justifica de fato a existência de D-M-D’, na explicação de Marx, é dado por mais valor acrescido no processo de trabalho capaz de gerar a mercadoria, e que aparece na forma de dinheiro na venda da mercadoria para o seu consumo final. Marx chamou essa valorização da mercadoria de um mais-valor, uma mais-valia.

As mercadorias ganham valor exatamente porque os humanos são seu produtores. No entendimento de Marx, é o trabalho humano o que engravida a mercadoria de valor. Assim, cada mercadoria pode ser expressa pela equação M = Cf + Cv + m. A mercadoria (M) é o resultado de capital fixo (Cf: maquinaria e sistema de organização do trabalho) acrescido do capital variável (Cv: os salários) e da mais valia (m). Esta, então, é o acréscimo de valor, para além de salários, máquinas e organização do trabalho, gerado no produto quando ele se transforma em mercadoria pelas mãos humanas, pelo trabalhador. Não há nada de mágico nisso. Há apenas algo chamado exploração, não necessariamente em sentido pejorativo. O capitalista explora o trabalhador, ou seja, faz o trabalhador trabalhar para além do necessário. Quando o trabalhador se põe em movimento e também movimenta as máquinas, ele gasta energia. Alimenta-se para repor essa energia. As horas de trabalho que foram gastas para produzir seu alimento (mercadorias feitas por outros trabalhadores ou por ele mesmo) são menores ou menos intensas que as horas que ele gasta para produzir as suas mercadorias, aquelas que ficam com o capitalista. Essa diferença entre o que ele consome e o que ele produz, que é mensurável pelo tempo, é a mais valia. Quando a mercadoria é vendida, ou seja, trocada por dinheiro, esse dinheiro volta para o capitalista acrescido, que corresponde ao mais valor. Desse mais valor ou mais valia em forma de dinheiro o capitalista paga a matéria prima, os salários, guarda um pouco para o novo ciclo e para o desgaste da maquinaria e, então, pega uma quantia para si mesmo, o seu lucro.

Eis aí o ciclo da mercadoria e o ciclo do dinheiro. Esses ciclos precisam estar no mesmo compasso. Se ficam descompassados, o sistema não funciona. Para isso ocorrer, o capitalista, na condição de empresário, em geral começa emprestando dinheiro de um outro capitalista – o banqueiro ou o financista. Desse modo ele pode comprar matéria prima, máquinas e pagar salários antes de ter de esperar a venda da sua mercadoria para ter dinheiro em mãos. Se assim é, uma parte da mais valia que retorna para o capitalista é transformada em pagamento da dívida para o banqueiro. Este, por sua vez, emprestou um tanto e recebeu mais. São os juros. É o preço do dinheiro. Corresponde ao tempo em que o dinheiro ficou com o empresário, segundo um cálculo dos riscos de empréstimo que o banqueiro faz ao investigar a vida e a capacidade do empresário, vendo se o negócio deste empresário vai mesmo render algo ou não. O banqueiro é um analista do empresário, para ver qual dos empresários, na necessária competição entre eles, tem chances de se sair melhor. Dá crédito a juros mais altos para aquele que acredita que terá de ter mais sorte para se sair melhor.

Eis aí a razão pela qual o capitalismo é velocidade. É necessário produzir mais mercadorias em menos tempo, e também é necessário colocar mais mercadorias para a venda em sempre menor tempo. Pode-se ampliar a produção e retirar mais mais-valia de duas maneiras: ou aumentando as horas de trabalho do trabalhador, mantendo o mesmo salário sem um desgaste exagerado das máquinas, ou então aumentando a produtividade por meio da introdução de melhores métodos de organização do trabalho fabril e empresarial e pela melhoria das máquinas. O segundo processo é o seguido historicamente, dado que o primeiro tem um limite matemático, que é o número de horas de uma jornada de trabalho máxima. A produtividade aumentada – que em geral depende da qualidade das forças produtivas, em especial a inovação tecnologia – coloca na praça mais mercadorias, mas cada mercadoria, tendo sido produzida em menos tempo, incorporou menos valor e, portanto, dará menos retorno de dinheiro. Esse processo é impossível de ser parado pelo capitalista. Ele se empenha sempre em melhorar a tecnologia de sua empresa, e até chega a maquinizar toda a produção. Depois desse passo, automatiza a produção. Fazendo isso, gasta apenas com o capital fixo, e não mais com salários. No limite, irá colocar no mercado uma mercadoria de pouco valor, e irá ampliar ainda mais a produtividade, na esperança de manter a massa de valorização, de mais valor, sem decréscimo. Esse processo é socialmente suicida. Pois na hora da completa maquinização dos produtos e serviços, ele não poderá mais ampliar a produção para compensar o valor diminuto, tendendo a zero, de cada mercadoria. Além disso, pela automação, socialmente falando, terá jogado para o desemprego uma massa enorme de trabalhadores, o que tornará a sociedade incapaz de consumir as mercadorias produzidas.

Sendo assim, o destino do capitalismo que é vigente segundo a fórmula D-M-D’, ao menos em termos lógicos, sempre teve seus dias contados. Um dia esta fórmula teria de ser contornada pela entrada na jogada de uma outra fórmula.

Para sair do impasse, e chegar à situação da formula vigente, D-D’, que dá a lógica ao capitalismo atual, o que se fez foi o que alguns historiadores denominar de “fuga para a frente”. Ao invés do capitalismo entrar em colapso, ele deu um salto de transformação. Ele saltou em direção ao precipício. Ora, se o precipício é grande, é bem fundo, a queda é demorada o suficiente para que gerações e gerações passem a viver no ar, em queda, o que também significa viver em velocidade.

A medidas que o capitalismo encontrou para a sua transformação e para não colapsar foram aquelas definidas historicamente pela vigência de uma série de elementos. Seus nomes são conhecidos: neoliberalismo, capitalismo financeiro, capitalismo cognitivo, biocapitalismo, subjetividade maquínica. Um nome que às vezes resume tudo isso é a semiotização do capitalismo ou semiocapitalismo. Todavia, a escolha de um nome síntese em geral depende do olhar profissional do teórico, se ele é filósofo ou sociólogo ou economista etc. Neoliberalismo é, em geral, o nome que utilizamos quando pegamos as transformações do capitalismo pela via das mudanças políticas, em especial as alterações da política econômica.

Há quem diga que o passo inicial decisivo para o neoliberalismo e a financeirização foi o fim do padrão dólar-ouro, em 1971. A partir daí veio o câmbio flexível. E a especulação com o preço dolar, ainda moeda universal, passou a ser um negócio rentável, capaz de gerar muitos outros negócios puramente financeiros. O neoliberalismo implicou na ampliação de setores a serem explorados pelo capital, com as privatizações. Implicou também em leis capazes de tornar as finanças livres de impedimentos estatais, deixando os sistemas de créditos e vendas de papeis financeiros mais livres. Criou o crédito aos indivíduos e estados por meio de bancos, facilitando a compra de mercadorias e bens para mais pessoas, uma vez alijadas de serviços estatais que foram privatizados. Tendo essas pessoas criado dívidas, o neoliberalismo flexibilizou os negócios dos bancos de modo que se pudesse fazer a securitização de dívidas, ou seja , venda de dívidas no mercado financeiro (títulos de dívidias privadas e públicas). Tendo o próprio estado criado dívidas, o mercado financeiro se incorporou títulos do governo como um modo de investimento, e para muitos mera aplicação. Tudo isso criou um novo tipo de mercado. Aliás, hoje, quando falamos em mercado estamos falando, quase sempre, em mercado financeiro. Eis então que o capitalismo passou de industrial para capitalismo financeiro.

O sistema industrial não desapareceu e nem está em vias de desaparecer. Mas a sua lógica foi abocanhada pela lógica da financeirização. Há autores que lembram que já faz trinta anos que a Ford ganhou algo, pela última vez, com a venda do carro. Seu lucro atual vem antes de tudo de uma financiadora (afinal, um banco), que ela própria administra. O dinheiro vem dos juros do crédito que ela fornece ao comprador do carro, para que este pague prestações ou carnê de consórcios. Os consórcios foram a febre comercial dos anos setenta para oitenta.

Junto disso, pela própria dinâmica do capitalismo industrial, ao procurar novas formas de criação de demanda, ele iniciou o processo de franchise, depois passou a cultivar a marca e o ambiente da marca, centrou suas expectativas na produção just in time, pela qual o consumidor passou a influenciar na produção. Gerou-se aí os mecanismos de feedback de empresas e fábricas, pelo Kanban e pela código de barras. Depois, esse processo foi acentuado por meio das informações das plataformas digitais, do tipo GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft), que são intermediárias de negócios através do rankeamento proporcionado pelo PageRank. O sistema de inteligência artificial (IA) e algoritmos do PageRank classifica páginas e sites e vídeos, monetiza os conteúdos e os locais de propaganda, e os oferece para empresários que pagam segundo o valor monetizado dessa hierarquia que espelha a “economia de atenção”. Mas o volume de dados dessas plataformas servem para algo até mais valioso, que é a informação. Esta serve para o setor produtivo de mercadorias ou serviços, de modo que toda empresa se vê na obrigação de saber a respeito do comportamento do consumidor – comportamentos culturais, políticos, morais etc. Saber isso a ponto de poder, inclusive, induzir comportamentos. Todo o capitalismo é hoje plataformizado e depende do volume de dados que as plataformas adquirirem e lapidam. Estas, então, devem transformar os dados em informação, e melhorar seus algoritmos e sua IA exatamente para que esses mecanismos possam, por sua vez, conseguir mais dados. Cresce então as interfaces no sistema de plataformas, e cada vez mais notamos que a subjetividade de nossos tempos é a subjetividade maquínica, ou seja, a união da linguagem humana com a linguagem da máquina. Há uma ciborguização da vida.

Todo esse sistema do GAFAM (e outras não menores) ampliou os serviços, a imaterialidade, o intangível, privilegiando o trabalho dito imaterial ou cognitivo ou de informação. Eis aí o capitalismo cognitivo: ele vai da propaganda aderente ao produto material até os serviços imateriais e as inúmeras formas de gamificação do trabalho, da vida em geral, do entretenimento que reduplica sua própria origem: é a gamificação dos games! Vendemos espetáculos (profissionais ou amadores, de companhias ou “espetáculos do eu”) e vendemos telemedicina e coisas do gênero. E cada vez mais estaremos subordinados ao que chamamos, agora, de “internet das coisas”. Esse processo reatro-alimentou a própria financeirização – que em princípio lhe deu crédito para gerar sua infraestrutura, nos anos noventa -, cujos negócios se ampliaram em números e cuja velocidade, em tempo real, tornou a bolsa de valores o lugar par excellence da computadorização, da internet, da infosfera. Tudo nesse mundo passou a fazer dos usuários da plataformas digitalizada os “prosumidores”, consumidores que são produtores ao mesmo tempo. E que trabalham ou por salários irrisórios, lapidando dados colhidos por máquinas, ou trabalham gratuitamente, como todos nós que fornecemos não só dados de comportamento para o GAFAM, mas que pelo uso aperfeiçoamos os sistemas dessas empresas. Somos uma sociedade que não mais distingue horas de lazer de horas de trabalho, somos a sociedade do biocapitalismo, o capitalismo que não explora mais jornada de trabalho, mas todo o processo de vida.

Esse capitalismo passou a trazer para o público a estimativa de valor de cada empresa não mais pela exibição de sua produtividade, mas por um número de fatores que podem impressionar a bolsa de valores, a impressão relativamente subjetiva de investidores, ou no mais das vezes, aplicadores. O capitalismo que diz que empresas valem por sua cotação na bolsa. Isso não diz nada da utilidade social dessas empresas. Todas elas, aliás, se tornaram empresas do tipo SA (sociedade anônima), que não investem mais em si mesmas, mas apenas tentam satisfazer os interesses monetários de seus acionistas.

Como disse, esse capitalismo financeirizado é o equivalente, no mundo da produção e serviços, ao capitalismo cognitivo. Paulo Virno, um fiósofo italiano do grupo dos marxistas autonomistas, diz que os que trabalharam na indústria cultural, ainda no regime fordista (os Trinta Gloriosos), foram os precursores do que todos nós hoje somos. Todos nós hoje somos nada além de trabalhadores envolvidos com a produção, venda e consumo de algum espetáculo. De certo modo, só agora podemos ver o alcance da fórmula do aparecer, que substituiu a dicotomia ser e ter, algo que foi anunciado pelo título “sociedade do espetáculo”, de Guy Debord, no final dos anos sessenta.

O espetáculo, seja artístico (uma música) ou seja do âmbito do saber (uma fórmula de vacina – não raramente desenvolvida por universidades com dinheiro público), é algo que pode ser apropriado pelo capitalista através do registro de patentes ou da compra do copyright. Nesse caso, o capitalista paga pelo bem ou pelo serviço só uma vez, depois, cede em aluguel este bem, autoriza sua reprodução. Com isso, ganha muito dinheiro. Produz menos valor, mas em termos de dinheiro, ganha mais do que com a mercadoria no sentido tradicional. As plataformas digitais se especializaram nisso, em ter não mais o consumidor, mas o consumidor associado ao usuário. Posso comprar um tênis pela Amazon, pois ela mesma me sugeriu o tênis, uma vez que sua IA me conhece bem por conta de meu rastro de navegação na Internet; mas também posso alugar um filme, e pagar por ele na mesma Amazon. Posso ter serviços aparentemente gratuitos nessas plataformas: o Google me dá condições de pesquisa, de comunicação entre pares por meio de e-mail. Meu rastro nessas plataformas valem muito: são dados sobre meu comportamento geral. O Facebook pode me dar gratuitamente uma rede social, na qual tenho amigos e também negócios. E eis que mais dados meus são incorporados pela maquinaria.

Podemos voltar a Marx, e ver se suas observações são condizentes com esse novo capitalismo. Há estudiosos que tomam Marx pela análise das comunicações e do transporte. Assim fazendo, encontram em suas análises base para mostrar que a comunicação em geral é alguma coisa que acelera a rotatividade do capital, essencial para a mais valia. A mais valia se dá na produção, mas ela só se realiza se todo o ciclo é percorrido. A mercadoria precisa ser vendida e consumida para que o processo circulatório dê ensejo a outra rotação.

Também pode-se ver Marx, nesse caso, como estudando os processos de renta, ou seja, de aluguel da terra, de cerceamentos para se obter alugueis. Esse processo, estudando por Marx em seu tempo, tem sua similaridade com o cerceamento que os monopólios promovem, em especial os da internet. Aliás, a partir do século XXI a internet livre praticamente desapareceu. Somos fornecedores de dados e de conteúdo para tudo o que vemos na internet, fazemos isso profissionalmente e amadoristicamente, fazemos isso intencionalmente ou mesmo sem ter um pingo de consciência. Uma coisa é certa: tudo que colocamos na internet é apropriado pelas plataformas e elas nos cobram para, depois, podermos utilizar tais coisas.

Uma outra maneira de se reencontrar com Marx ao nos depararmos com esse novo capitalismo, e dar um pulo em seus escritos não publicados, em especial os Grundrisse. Neles, Marx fez um alerta: cada vez mais o tempo de trabalho seria algo pouco interessante para se utilizar de medida do valor e da mais valia. O capital iria depender da qualificação das forças produtivas em geral, e estas, mais e mais, iriam depender das ciências em vários sentidos, e das ciências da natureza principalmente. Nesses escritos, Marx mencionou o “General Intellect“, ou seja, uma inteligência geral, um saber difuso, que deveria nutrir as forças produtivas, ou ser ela própria uma força produtiva, sendo que o regime de criação de riquezas estaria vinculado à produção vinda do “indivíduo social”, ou seja, um corpo social capaz de se aproveitar do saber difuso e impulsionar a geração de produtos e serviços. Muitos leitores de Marx viram nessas passagens uma descrição daquilo que vivemos hoje, o saber em rede que gera trabalhos de todo tipo. São na maior parte trabalhos físicos, que lidam com a digitalização, mas que, em termos de conteúdo, diferem entre si. São trabalhos da ordem do imaterial, ou do âmbito da cognição ou espetáculo etc. São menos possíveis de serem avaliados e monetizados pelo tempo. O capitalismo arrumou uma boa maneira de remunerar trabalhadores ao seu bel prazer. O nome desse tipo de capitalismo, como já dissemos, é capitalismo cognitivo.

As plataformas digitais permeiam todo tipo de empresa, e se tornaram uma necessidade para elas. O mesmo ocorreu com o capitalismo financeiro, em relação a todo tipo de empresa. Todavia, há de se perceber, que o capitalismo financeiro pouco financia as empresas perto do que faz por si mesmo, gerando antes de tudo dinheiro que vira patrimônio – daí o aumento de muitos bilionários e o aumento, também de gente muito pobre no mundo todo. Mas a ideia de gerar lucros sem empregar pessoas, próprias do capitalismo financeiro, também vinga no capitalismo cognitivo. A fábrica se automatiza, e as empresas do GAFAM, por elas próprias, perto do capital que movimentam, empregam poucas pessoas no mundo todo.

Aliás, as empresas digitais, especialmente o GAFAM, são avaliadas hoje não por mercadorias que possuam ou por patrimônio físico, mas simplesmente pelo valor de comercialização que apresentam na bolsa. A economia do conhecimento ou o capitalismo cognitivo, seja ela produtivo ou não, é avaliado pelo elemento do capitalismo que veio junto com ele, o mercado financeiro. Justamente este, que é visto como negociando dinheiro, sem produzir valor, é quem registra o que seria o valor dessas empresas, ou seja, quanto valem suas ações no mercado bursátil.

A equação do capitalismo financeiro é a D-D’. Mas a equação do capitalismo cognitivo, para muitos intérpretes de Marx, não deveria ser esta. Há aqueles que dizem que o lucro das empresas do capitalismo de plataforma ou capitalismo cognitivo é a renta. A renta é o novo lucro, dizem. Isso não é valor gerado? Não se trata aí de horas de trabalho, profissional ou amador, intencional e não intencional, levadas embora pelo capital, para sua acumulação. Não é isso, enfim, algo próximo da definição de mais valia? Há quem tenha falado que se trata sim de mais valia, que esse trabalho gera valor. Seria a “mais valia 2.0”.

Por qualquer via que se pegue para falar de Marx e o capitalismo atual, há ainda um detalhe, que é a similaridade entre o que o capitalismo atual privilegia no seu projeto de acumulação. É que aquilo que o capitalismo de plataforma tem em alta conta são dados, informações, conhecimento, provocação de sentimentos, e tudo isso é alguma coisa da ordem do que se vende mas não se entrega. Todos somos usuários do que é o imaterial. Uma música não fica com quem a escuta. Quem a escuta pagar por ela. Ora, esse tipo de mercadoria se aproxima em bizarrice à mercadoria do capitalismo financeiro: o dinheiro é o que não é entregue. Pagamos por ele, com juros, mas temos de devolve-lo. É vários aspectos o capitalismo financeiro e o capitalismo cognitivo se parecem. Mas se o primeiro é improdutivo, o segundo tende a gerar valor e não só dinheiro.

Para finalizar, uma palavra mais próxima da filosofia. Produzimos dados e os aperfeiçoamos pelo uso. Alimentamos a inteligência artificial e damos informações sobre os produtos que temos ou que queremos. Inclusive, expomos de alguma forma os que queremos que sejam inventados. Eis aí a velocidade reinstaurada, agora em outro nível. Tornamo-nos todos os “prosumidores”. Nossa subjetividade ganha, então, uma primeira modificação: tudo fazemos na infosfera, e segundo uma dinâmica informacional que depende de uma situação que é a de vivemos nas interfaces. Interface entre linguagem humana e linguagem de máquina. Trata-se de um passo aberto para que sejamos agenciados pela máquina, e então a subjetividade vigente passa a ser chamada de subjetividade maquínica. Essa subjetividade tem tudo para sofrer de TDH, o Transtorno do Déficit de Atenção. Déficit de atenção não quer dizer estar “avoado”, mas às vezes se concentrar em um aspecto ou atividade de modo exacerbado, não abrindo espaço mental para informações correlatas, paralelas. Daí a ansiedade, os comportamento histéricos de teatralização de si mesmo, a ampliação de frustrações, o narcisismo exacerbado. Tudo aquilo que as “novas patologias” apresentam para além da conta, irão logo se transformar, nos dando nova normatividade. Seremos sadios, uma vez que iremos transformar todas essas patologias em doenças avaliadas por espectros, e não por diagnósticos taxativos. O mundo será louco. É louco. Mas nenhum de nós será declarado louco por ser alguém … no capitalismo.

Paulo Ghiraldelli, filósofo, professor, escritor e jornalista

4 comentários em “Karl Marx e o capitalismo: o dele e o nosso”

  1. Excelente texto! O Capitalismo se trata de uma pirâmide financeira, onde apesar de ter criado ramificações que a deixaram complexa e robusta, ela não deixa de ser uma pirâmide onde em algum momento ruirá.

  2. Perfeito texto Professor, explica de maneira simples a complexidade de entender o Capitalismo de hoje… Então, o ato de eu estar lendo e comentando o seu texto, eu já estou consciente ou inconsciente, alimentando o algoritmo, dando-lhe material a ganhar dinheiro, e eu sem ganhar nada?!

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